Conheci Elisa Lucinda muito miúda, meu pai e minha mãe eram amigos dela antes de eu nascer. Nas memórias mais antigas sobre arte, existe Elisa. Devia ter uns quatro anos de idade e, na sala de seu apartamento muito claro, cheio de detalhes na decoração, eu, que quase não tenho lembranças da minha infância, recordo perfeitamente das prateleiras cheias de pequenas esculturas de mulheres gordas, algo parecido com as obras de Francisco Botero. Eram mulheres de todas as formas, em diversas poses, com muitas roupas coloridas. Me lembro da luz indireta e quente. Era uma casa que tinha magia, um encanto, que me marcou. 

Na estante da minha casa tinha seu primeiro livro de poesias, “O Semelhante” (1994) –  foram os primeiros versos de poesia que li na vida. Aprendi a escrever copiando as poesias de Elisa, me lembro de treinar  métrica e rima falando as poesias do livro em voz alta, e anos mais tarde comecei a me arriscar escrevendo meus próprios versos. Usei tanto esse aquele livro que a capa descascou. 

Com uns 12 anos assisti à estreia de “Parem de falar mal da rotina”, sua peça teatral, um monólogo onde na primeira cena Elisa se apresentava nua, tomando um banho no palco. Fiquei fascinada com sua maestria em capturar a atenção, a risada, e exercer sua liberdade, plena em cena. Me lembro de escrever nos meus diários sobre o sonho de ser escritora, cantora, atriz, assim como ela, que só com sua existência iluminava o terreno dos meus sonhos de menina.

Anos depois, no início da vida adulta, já estudante de teatro, descobri que amava uma moça e levei a namorada para ver o “Parem”. Enquanto o mundo me violentava profundamente por assumir minha sexualidade sem vergonha, Elisa me recebeu depois do espetáculo e me disse que o amor sempre valia à pena. Mais uma vez lá estavam seus poemas cumprindo a função de me manter viva e agarrada na saia da poesia, como já disse ela. 

Em 2019, já com quase 30 anos, conheci um rapaz e, durante o flerte, ganhei de presente “A Fúria da Beleza”, um de seus livros de poesia, com meu nome escrito em um dos poemas. Fui fisgada por essa “cantada”, achei que o livro era um bom presságio e pouco tempo depois este rapaz tornou-se o pai da minha filha. Grávida, fui ver novamente o espetáculo “Parem”, e contei para ela que a existência daquele bebê estava ligada à sua poesia. A poesia de Elisa era meu oráculo e sua palavra minha guia.

Ano passado, durante um evento no qual fui contratada para palestrar, Elisa era a principal atração e recitou suas lindas poesias –  chorei, sorri, me emocionei do início ao fim. No final, entrei na fila para comprar “O Livro do Avesso: pensamento de Edite” e autografar meu exemplar. A dedicatória que pedi para minha filha tinha o lindo desenho de um sol dizendo: “Para Ayó, que o mundo seja pra você todos os seus ancestrais merecimentos”. Ali, renovei meus votos de fidelidade com a poesia e selei meu pacto de tornar a beleza do verbo de Elisa Lucinda uma herança de mãe para filha, uma herança de poesia ancestral.